quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Goffman's World

No livro "Manicômios, Prisões e Conventos”, o sociólogo Erving Goffman analisa sociologicamente estas três instituições.
Nesta obra, datada de 1961, o sociólogo faz levantamento crítico a respeito da vida dos indivíduos em instituições fechadas e apresenta como este tipo de segregação opera sobre estas pessoas. Este estudo foi feito durante três anos em enfermarias nos Institutos do centro clínico de saúde nos Estados Unidos. Dentre os quais, dá ênfase ao estudo feito na cidade de Washington, no Hospital Elizabeths. A finalidade do autor nesta análise foi conhecer o mundo social dos internados do ponto de vista deles próprios. Goffman observa que ainda que realizado em repartição oficial, com apoio financeiro de outra repartição, o trabalho não sofreu influências ou advertências capazes de restringir a liberdade do pesquisador.

A obra aborda de instituições totais de modo geral e que o principal enfoque refere-se ao mundo do internado e não ao mundo do pessoal dirigente. O livro está dividido em quatro partes. O primeiro, "As características das Instituições Totais", faz um exame da vida em instituições totais. Os demais são: "A carreira mental do doente mental"; "A vida íntima de uma instituição pública" e "O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais". Conforme o autor:
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (Goffman, 1974, p. 11).
        Neste sentido podem-se extrair elementos que formam uma instituição total: a) um local de residência e trabalho; b) a presença de um grande número de indivíduos em situação semelhante; c) a afastamento desses indivíduos, por um certo período de tempo, da sociedade mais extensa; d) o confinamento a uma vida formalmente administrada. As principais características da instituição total são: todos os aspectos da vida desenvolvem-se na mesma localidade e sob o comando de uma única autoridade; todas as atividades cotidianas são feitas na presença de outras pessoas, a quem se isenta o mesmo tratamento e de quem se exige que façam juntas as mesmas coisas; todas as atividades cotidianas encontram-se estritamente programadas, de modo que a efetivação de uma acarrete espontaneamente à concretização de outra, conferindo um encadeamento rotineiro de atividades por meio de regras protocoladas e de um corpo de funcionários; as inúmeras atividades obrigatórias encontram-se associadas em apenas um plano racional, cujas finalidades são obter os alvos próprios da instituição. Goffman, além disso, enumera as instituições em cinco grupos distintos.
         O primeiro deles é que as Instituições são criadas para vigiar pessoas impossibilitadas e inofensivas, como por exemplo, asilos e orfanatos. A segunda é que são lugares situados para tomar conta de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas, que são do mesmo modo uma ameaça à comunidade, ainda que de modo não proposital, como os sanatórios hospitais para doentes mentais e leprosos. Já o terceiro visa proteger a comunidade contra perigos intencionais, pretexto pela qual o bem-estar das pessoas, portanto isoladas, não estabelece o problema imediato. Incluem-se as penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração. Há ainda, as instituições estabelecidas com o desígnio de cumprir, de maneira mais apropriada, determinado serviço de trabalho, e que se relevam somente por meio de tais embasamentos instrumentais. Nesta ocasião, inserem-se os quartéis, escolas internas, campos de trabalho e colônias. Por fim, os estabelecimentos designados a servir de abrigo do mundo, ainda que muitas vezes sirvam, além disso, como lugares de instrução para os religiosos, como mosteiros, conventos, etc.
        A prisão, para Goffman é uma instituição total. Toda instituição aspira parte do tempo e do interesse de seus membros, proporcionado-lhes, de certa forma, um mundo particular, tendo sempre uma tendência absorvente. Quando essa tendência se aguça nos deparamos perante as chamadas instituições totais, como é o caso da prisão. A tendência absorvente ou totalizadora está simbolizada através dos obstáculos que se contrapõem à interação social com o exterior e ao êxodo de seus membros que, na maioria das vezes, contraem forma material. Isto é, portas fechadas, muros aramados, alambrados e outros. Um dos aspectos que provoca sérios questionamentos a respeito das possibilidades ressocializadoras da prisão é o caso desta, como instituição total, absorver toda a vida do recluso, servindo, por outro lado, para demonstrar sua crise.
O sociólogo insere a prisão dentro do terceiro tipo de instituições totais, que são aquelas organizadas para dar proteção à comunidade contra aqueles que constituem propositalmente um risco para ela e não apresentam, com intuito imediato, o bem estar dos internos. O fato de as prisões terem como finalidade central à proteção da sociedade é outro dos aspectos que indica intensas contradições sobre a finalidade ressocializadora que se confere à pena privativa de liberdade.
   Ao chegar à instituição, este internado traz consigo uma cultura que é a estabilidade de sua organização cultural. Com a permanência na instituição, que pode ser muito longa, pode acontecer a perda daquelas referências culturais. Este processo é distinto da aculturação ou assimilação e desvirtua o internado a uma grande dificuldade ou a uma insuficiência de encarar os aspectos da vida habitual, quando regressa ao “mundo de fora”.
As instituições totais criam uma tensão entre o “mundo doméstico” em que vivia o internado e o “mundo institucional” em que passa a viver, utilizando-a como uma força estratégica no controle de homens.
Geralmente, o processo de admissão também leva a outros processos de perda e mortificação. Muito freqüentemente verificamos que a equipe dirigente emprega o que denominamos processo de admissão: obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto as regras, designar um local para o internado (GOFFMAN, 1974, p.25-26).
            Expõe que na instituição total há uma incompatibilidade entre o pessoal e os internos. Essa incompatibilidade se expressa por meio de rigorosos estereótipos: o pessoal tende a avaliar os internos como bárbaros, velhacos e indignos de confiança. Os internos, por outro lado, tendem a avaliar o pessoal como insolentes, arbitrários e mesquinhos. O pessoal tem um sentimento de superioridade em relação aos internos e estes tendem a sentirem-se, ainda que inconscientemente, inferiores àqueles, débeis, censuráveis e culpados. Esses sentimentos contrários são uma grande barreira, sobretudo quando se almeja sobrepor técnicas de cura dirigidas à recuperação do encarcerado.
           O antagonismo entre pessoal e internos é algo intrínseco à própria natureza da instituição total. A divergência entre pessoal e internos pode ser tão intensa que os dois grupos podem constituir dois mundos social e estruturalmente diferentes, nos quais poderão existir alguns pontos formais de tangência, mas praticamente sem penetração recíproca. A instituição total transforma o interno em um ser passivo. Todas as suas necessidades de vestuário, lazer, etc, estão sujeitas a instituição. O interno pode adaptar-se com facilidade a maneira de ser passivo, encontrando equilíbrio ou recompensa psicológica em seu exercício. Na instituição total, em regra, não se admite que o interno seja responsável por alguma ação e o que interessa efetivamente é a sua adesão às normas do sistema penitenciário. A passividade do interno transformada em "pautas" normais de comportamento é o efeito que a instituição total produz. É mais uma causa a evidenciar a impossibilidade da ressocialização do delinqüente por meio do internamento.
              A instituição total causa no interno, desde o início, uma série de depressões, degradações, humilhações. A tortura é sistemática, apesar de que nem sempre seja proposital. O obstáculo que as instituições totais erguem entre o interno e a sociedade exterior concebe a primeira “mutilação”. Desde o período em que a pessoa é afastada da sociedade, do mesmo modo é excluída do papel que nela desempenhava. Em seguida, o interno é submetido a métodos de aprovação, sendo manipulado, rotulado como uma peça para ser imposta na burocracia administrativa do estabelecimento, no qual precisará ser transformado através de operações de rotina. Esse método leva a uma nova despersonalização e depreciação do ego deste interno. Quando a instituição informa ao interno recém ingressado dos fins e posses que lhe são consentidos, este volta a sentir uma sensação de inferioridade. Os próprios limites espaciais destinados ao indivíduo representam uma forte limitação ao desenvolvimento da pessoa. Outra das graves agressões à personalidade do encarcerado é que a instituição total desobedece e abole completamente a intimidade do indivíduo. Essa intimidade, segundo Goffman é transgredida em dois sentidos. O primeiro é durante o processo de aceitação, no qual todos os dados referentes ao interno, bem como sua conduta no passado, são coletados e armazenados em arquivos especiais, à disposição da administração penitenciária. A instituição total invade todo o universo íntimo do recluso, sejam de caráter psíquico, pessoal ou de qualquer natureza, desde que possa expressar alguma difamação. O segundo igualmente se extingue a intimidade pela deficiência de privacidade com que se desenvolve a vida cotidiana do interno. Ele jamais está só. Precisa conviver com pessoas que geralmente não são suas amigas. A obrigatoriedade de estar com outras pessoas pode ser tão penosa como o afastamento constante. O mais grave desta condição é a impossibilidade de saída da instituição total como acontece na sociedade civil. Essa desmoralização à intimidade da pessoa verifica-se inclusive nos lugares resguardados, como quartos e banheiros.
             Mais uma conseqüência contrária que uma instituição total produz é a subordinação do internado a um procedimento de perda da competência para adquirir hábitos que se estabelece na sociedade em comum. Todas as negatividades relacionadas sobre uma instituição total como a prisão, mostram que esta é um instrumento inadequado para a obtenção de algum efeito positivo sobre o recluso e reforçam a tese de que a prisão, como resposta penológica, encontra-se efetivamente em crise. Por outro lado, o internado recebe um conjunto de instruções que levam a reorganização pessoal. Trata-se do sistema de privilégios que possui três elementos básicos, conforme o autor.  O primeiro deles diz respeito ao conjunto de prescrições e proibições. O segundo é um pequeno número de privilégios definidos, conferidos em troca de obediência à equipe dirigente. E por ultimo, a imposição de castigos como decorrência de indisciplina. Existe, também, um "sistema de ajustamentos secundários” que admite aos internados a aquisição de algumas satisfações proibidas.
A partir da presença de ajustamentos secundários, podemos predizer que o grupo de internados criou algum tipo de código e alguns meios de controle social e informação para impedir que um internado informe a equipe dirigente quanto aos ajustamentos secundários de outro (Goffman, 1992, p. 54-55)
O sistema de privilégios e os processos de mortificação constituem condições às quais o internado deve adaptar-se. Para isso, Goffman nos mostra táticas diferentes, como quando o internado deixa de dar atenção a tudo, menos aos episódios que cercam o seu corpo; a "tática da intransigência" (o internado intencionalmente desafia a instituição ao negar-se a cooperar com a equipe dirigente. Em troca, recebe um excessivo castigo e a instituição resolve vencê-lo) e a "colonização" que incide na adoção da instituição, pelo internado, como o "seu lar". Para o sociólogo cada tática concebe uma configuração distinta de encarar o conflito entre o mundo original e o mundo institucional.
A administração penitenciária apóia a dominação que alguns encarcerados desempenham na estrutura social carcerária. A própria vigilância dá alguns privilégios aos reclusos para que auxiliem na adaptação dos demais às regras da prisão.
A conflitante realidade penitenciária supõe que as autoridades penitenciárias devam propiciar um ambiente reabilitador, quando, na verdade, são obrigadas pelas situações, a fortalecer os poderes de determinados líderes, contrariando os objetivos reabilitadores da pena privativa da liberdade.
A obra "Manicômios, Prisões e Conventos” de Goffman aborda as instituições totais. As instituições totais, em razão do seu fechamento, provocam a destruição da personalidade do internado, impossibilitando-o de conquistar o papel anteriormente desenvolvido no mundo exterior, havendo antagonismo entre o grupo dirigente e o grupo de internados.
No caso da instituição penitenciária, mesmo não a considerando uma instituição total, mas uma instituição relativamente fechada, já que no Brasil o recluso tem a chance de manter relação com o mundo exterior, é evidente que muitos dos efeitos da obra de Goffman podem ser aplicados ao sistema social carcerário: a dualidade entre os funcionários das penitenciárias e os reclusos; a mortificação do eu do interno; a estratificação social da sociedade carcerária; o sistema de privilégios, a linguagem empregada nos estabelecimentos carcerários; o código dos internos; a institucionalização dos internos; dentre os fatores que autenticam o valor desse estudo para área da sociologia jurídica.

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